Com a voz fremente de alegria, Alcoa concordou.
Soou então a maior gargalhada dessa noite. A figura estranha diluiu-se no recanto da cabana e o vento voltou a soprar lá fora, com redobrada fúria. O rapaz guardou segredo de tão misteriosa visita. A ninguém contou o que lhe fora proposto. Baça notou que algo mudara, e interpelou-o:
- Alcoa, eu sei que as tuas colheitas têm decorrido maravilhosamente. Mas só as tuas, e isso eu não entendo. Todos se queixam, todos... Só tu tens tido sorte!
Ele riu um riso forte, que a impressionou. A rapariga estremeceu. Mas já ele lhe dizia adeus, afastando-se a passos largos. As colheitas chegaram ao fim. Alcoa não cabia em si de contente, tinham excedido todas as suas expectativas. Estava rico! Riquíssimo! Foi então que a estranha e misteriosa figura visita de tempos atrás voltou a fazer a sua aparição.
- Cá estou eu como prometi, podes casar quando quiseres. Mas primeiro assina este documento conforme prometeste. E com sangue... Este documento só poderá ser assinado com sangue... O teu sangue!
Alcoa suspirou.
- É bem pouco o que me pede em troca de tanto que me dá. Aqui tem a minha assinatura. A partir dessa noite, os negócios de Alcoa começaram a prosperar de um modo quase aflitivo de tão extraordinário que era. Os vizinhos começaram a olhar o rapaz com desconfiança e ficou decidido que um dos mais velhos fosse falar com Alcoa.
– Olha! rapaz! Venho falar-te em nome dos homens desta terra. Tu és ainda muito novo e inexperiente na vida, já o mesmo não acontece conosco. Somos velhos e sabemos alguma coisa. Pensamos que tu tens um pacto com o Demônio. Só assim se explica que as tuas terras estejam cada vez melhores enquanto as nossas parecem cada vez piores. Pois tem cuidado, Alcoa! Tem cuidado!
A fúria transtornou a expressão do jovem lavrador. Levantou o braço contra o velho, mas uma voz de mulher gritou o seu nome, suspendendo-lhe o gesto. Com voz tremente, Baça disse:
- Dizem que fizeste um pacto com o Demônio... E vendo-te como estás, desfigurado, acredito que é verdade. Tenho medo, Alcoa...Tenho medo!
O jovem gritou colérico:
- Se acreditas... Vai-te! Desaparece da minha vista!
Correndo como louca, a jovem Baça abandonou o noivo. Andou sem destino três dias e três noites. Chorando a sua desdita. A morte veio encontrá-la quando acabara de chorar a sua última lágrima. E conta a lenda que essas lágrimas reunidas se transformaram numa pequena ribeira, à qual foi dado o nome de Baça.
O jovem Alcoa caiu num desespero terrível quando soube da morte da sua amada. E diz-se que renegou por completo o pacto que fizera e jurou a Deus doar as suas terras a Santa Maria se conseguisse alcançar o perdão de Baça. Chorava Alcoa, sem cessar, a mágoa de ter sido ambicioso. Chorava de noite e dia. E tanto chorou que se transformou num rio: o rio Alcoa.
E nas noites luarentas, as águas do Alcoa murmuravam, quebrando o silêncio:
- Baça, meu amor. Perdoa-me! Peço-te por tudo que me perdoes! Baça, jurei dar as minhas terras a Santa Maria, se tu me perdoasses...
Pois numa dessas noites outra voz respondeu às lamentações e aos apelos do rio Alcoa.
- Sim... Já que tanto o desejas vou perdoar-te, para que estas terras sejam na verdade de Santa Maria, e tu possas remediar assim os teus erros passados. Vou juntar-me a ti, Alcoa!
E ali mesmo, a ribeira Baça se misturou com o rio Alcoa, desaguando no seu lado esquerdo, que é o lado do coração...
Desde esse instante, o rio Alcoa passou a denominar-se Alcobaça e todas essas terras ficaram devotadas a Santa Maria, cumprindo assim a jura feita.
E diz-se que em certas noites se continuam a escutar murmúrios de vozes humanas, no meio das águas do rio.
Murmúrios apaixonados.
Murmúrios de amor
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Essa lenda faz parte do compêndio de Matheus Martins de Almeida e Miranda e já foi contada em praça pública pelo próprio.
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at sexta-feira, novembro 19, 2010
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